Muito já foi dito sobre as mudanças que, ao longo da última década, os serviços de vídeo on demand têm provocado no consumo de mídia. Com muito mais autonomia para escolher o que assiste, em qualquer tela, o público tende a evitar, pular, fugir do que não é de seu interesse. A publicidade não fica de fora dessa transformação: a audiência disposta a, passivamente, receber e assimilar qualquer propaganda está em extinção. Pessoas impactadas não são, necessariamente, pessoas que capturaram a mensagem do modo idealizado pela estratégia de marca.

Por mais divertidos que sejam a Aracy da Top Therm ou o Juarez da TekPix, o hard sell perde espaço nesse contexto. A publicidade tradicional vê seus pontos de contato com o consumidor se tornarem escassos e ineficientes, e forçar a reabertura dessas janelas com conteúdo indesejado parece um futuro pouco promissor. Hoje, a corrida das marcas é por relevância — e o conhecimento profundo do consumidor é imperativo para conquistá-la. Parte da mudança em curso, as plataformas de streaming têm muito a ensinar.

Cruzamento de dados comportamentais dos usuários explica a concepção de House of Cards (Imagem: reprodução)

O caminho escolhido pela Netflix para a versão americana de House of Cards, nasceu de um cruzamento dessas preferências, segundo relato de um executivo da empresa: A rede social, filme dirigido por David Fincher, registrava excelentes índices de visualização do início ao fim (completion rate); a versão original, britânica, de House of Cards se destacava pela audiência, e uma parte significativa desse público também assistia a filmes dirigidos por David Fincher e estrelados por Kevin Spacey. Essa sinergia orientou a decisão, em 2013, de investir US$ 100 milhões por duas temporadas de 13 episódios — que se revelaram um fenômeno de audiência e repercussão. Esse tipo de combinação das preferências do público orienta os algoritmos de recomendação de conteúdo, peça fundamental do modelo de negócio dos serviços de VOD.

A inteligência de dados construída a partir do consumo nas plataformas também pode embasar estratégias de marketing de conteúdo, tanto em sua concepção quanto na distribuição. Pouco é divulgado a respeito da lógica de funcionamento dos sistemas de recomendação no VOD, mas a segmentação por interesse esse meio — onde o watch time de cada conteúdo é bastante superior ao das redes sociais — indica perspectivas interessantes para marcas: há espaço para narrativas mais sofisticadas, com maior índice de atenção e mais assertividade.

Tanto no cinema quanto em séries e programas de TV, há muito tempo o mercado publicitário trabalha com a inserção de produtos integrados ao conteúdo. Essa estratégia continua sendo adotada e é eficiente para objetivos de awareness— isto é, para aumentar a lembrança da marca — uma vez que, dentro de um conteúdo de interesse do público, não passará despercebida. No entanto, o awareness é apenas a etapa inicial do funil de mídia: ter uma marca conhecida não é suficiente para uma estratégia de publicidade eficaz. Os fatores de decisão de compra são cada vez mais numerosos, de entendimento complexo, e demandam das marcas uma narrativa sólida e convincente, que transmita a proposta de valor do produto, diferencie-se dos concorrentes e se associe aos valores, atributos, personalidade e sentimentos desejados.

Como dar conta de tantos aspectos em janelas tão breves de diálogo com o público, que de forma geral está pouco interessado no que empresas têm a lhe dizer? 

Documentário financiado pela Netscout explora a narrativa da marca sem superexposição comercial (Imagem: reprodução)

O documentário Eis os delírios do mundo conectado, de Werner Herzog, teve o financiamento e a cocriação da Netscout, desenvolvedora de softwares com atuação B2B. Nasceu de uma reunião de briefing de uma campanha de comunicação, que tinha como objetivo celebrar pessoas e empresas que evoluem e protegem o mundo conectado. O resultado deu luz a um discurso de marca claro e consistente, que resolve as nuances pretendidas pela marca e estabelece um ponto de contato de fato relevante com o público — um diretor reconhecido por clássicos do cinema documental abordando um tema de forte apelo: as transformações provocadas pela internet na sociedade contemporânea, com relatos de seus protagonistas. 

Se o futuro é a derrubada das fronteiras entre publicidade e conteúdo, que nos esforcemos para que esse resultado seja interessante: é, sim, possível resolver os desafios de comunicação das marcas com conteúdo que dá vontade de ver, mesmo em meio a um catálogo que parece infinito.

Gabriel Pacheco

Author Gabriel Pacheco

Formado em Relações Internacionais pela USP, Gabriel atua hoje como analista de inteligência de vendas na Ana Couto.

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