Não é inédita a iniciativa da Mattel em se lançar ao audiovisual a partir de suas propriedades em brinquedos. A emergência da franquia Barbie em filmes de longa-duração foi inaugurada em 2001, com o lançamento de Barbie: O Quebra-Nozes (título no Brasil), uma coprodução da Mattel com a Mainframe Entertainment. Em seguida, a Mattel continuou capitalizando em cima do brinquedo com o lançamento de outros diferentes filmes de animação, como Barbie e As 12 Princesas Bailarinas (2006), Barbie: Aventura nas Estrelas (2008) e Barbie e As Três Mosqueteiras (2009) – este último, no formato de live action (em que atores e atrizes servem atuam e servem de base para animações). A franquia provou-se um sucesso. O modelo da Mattel em parceria com produtores especializados na confecção dos produtos audiovisuais tem sido, desde então, a forma de atuação da empresa em sua proposta em transformar suas propriedades em filmes. A Mattel evoluiu no modelo de coprodução até formalizar a criação de uma divisão especializada em conteúdo audiovisual em 2013: a Mattel Playground Productions. Foram, desde então, 12 lançamentos em parceria com diferentes produtores de filmes e animações (WIKIPEDIA, 2023), entre eles mais cinco animações da franquia Barbie. Em 2023, a empresa mudou o nome da divisão especializada em audiovisual para Mattel Films junto do lançamento de seu maior sucesso: o filme Barbie, coprodução com a Warners Bros. Pictures, empresa de produção e distribuição cinematográfica parte do conglomerado de mídia Warners Bros. Discovery.
Em suas primeiras animações, entre os anos de 2001 a 2009, o universo da Barbie foi associado a contos-de-fada e princesas, limitando-se à esfera infantil como proposta de narrativa e de público-alvo. De 2014 a 2016, o universo temático dos filmes da Barbie ainda privilegiava a temática das princesas, porém o enredo foi um pouco além nos longas Barbie e Suas Irmãs em uma Aventura de Cachorrinhos (2015) e Barbie e As Agentes Secretas (2016). Ainda assim, todas as obras deste período mantiveram a narrativa direcionada ao público infantil. Havrylenko aponta o universo simbólico ao qual se refere a boneca, manifestado nas produções audiovisuais da Barbie: “A franquia “Barbie” não é apenas a história de uma boneca, é a história de um ícone de estilo e cultura que teve um impacto profundo em milhões de meninas e mulheres em todo o mundo. As características desta franquia podem ser divididas em vários aspectos principais. Em primeiro lugar, é a longa história e legado: a Barbie foi apresentada pela primeira vez em 1959 e, desde então, tornou-se um ícone no mundo dos brinquedos. Sua longa história inspira um sentimento de confiança entre os consumidores e acrescenta significado cultural à franquia. Em segundo lugar, é a diversidade de personagens e acessórios: uma das principais características da Barbie é a sua capacidade de assumir uma infinidade de papéis e personas diferentes. De enfermeira a astronauta, de princesa a empresária, Barbie sempre pode se reinventar. Isso permite que a franquia atraia um público diversificado e crie diversas coleções e acessórios de bonecas. O terceiro aspecto é a mensagem positiva: a franquia “Barbie” visa incutir valores positivos e ensinar às meninas sobre respeito próprio, amizade e a possibilidade de serem o que quiserem. Esta mensagem faz da Barbie não apenas um brinquedo, mas também um modelo. É claro que existem outros aspectos importantes dentro da franquia, como: Moda e estilo: a Barbie sempre foi associada à moda e ao estilo. Suas roupas, acessórios e até casas definem tendências e inspiram meninas e mulheres a se preocuparem com seu próprio estilo” (2023).
Podemos perceber, portanto, que os longas referentes à boneca se conectam com o posicionamento da marca Barbie, ainda que inicialmente tenham sido direcionados ao público infantil. A inovação em termos de narrativa, formato e público se dá com o filme Barbie em 2023. No Brasil, a classificação indicativa do filme pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (CONAR) foi para maiores de 12 anos. O filme foi amplamente consumido por adolescentes e adultos no país, tornando-se o longa mais assistido nos cinemas do país em 2023, com cerca de 10 milhões de espectadores contabilizados em agosto daquele ano. Tornou-se a maior bilheteria do Brasil em 2023. Em todo o mundo, o sucesso do filme Barbie foi imenso em termos de audiência, faturamento, venda de bonecas e produtos licenciados. Além disso, o filme foi pauta de debates em redes sociais sobre o feminismo contemporâneo explorado na narrativa como também foi tema de artigos acadêmicos neste quesito. Foram mais de 1.400 artigos acadêmicos sobre o filme Barbie, de acordo com o Google Scholar, em pesquisa feita em dezembro de 2023. No entanto, tanto em língua estrangeira quanto em português, foram escassos os artigos que discutiram o filme sob o ponto de vista do branded content, temática que nos interessa nesta aproximação com o objetivo. A pauta ficou em torno da temática feminista explorada pela narrativa, elucidando que, de fato, o filme afetou o debate na mídia e na audiência, o que nos permite observar como métrica de sucesso este engajamento provocado no público, algo então além dos números de faturamento e audiência em si.
Conteúdo de marca ou branded content
O branded content pode ser literalmente traduzido como conteúdo de marca. Em formato audiovisual, desperta elementos afetivos na audiência a ponto de mobilizá-la a envolver-se ainda mais com a marca, o produto ou o serviço. O elemento técnico que marca o branded content e o diferencia dos publieditoriais no meio impresso ou na internet é o fato de ser em vídeo. Essa demarcação do audiovisual para evidenciar a terminologia do formato foi dada a partir de 2001 em Cannes Lions (festival de criatividade em publicidade realizado anualmente em Cannes desde 1953) com a inscrição da série The Hire, da montadora automotiva B.M.W., como referência de branded content para o júri. A série consta como o primeiro conteúdo de marca utilizando o audiovisual como linguagem e formato (Hardy, 2012, p. 11).
O fato de a construção de uma ação de marca ser em vídeo faz diferença na forma como ela pode cativar o consumidor. Não à toa, os formatos de product placement seguem vivos embutidos em reality shows e novelas da TV aberta (Big Brother Brasil e as novelas da Globo são os maiores exemplos no país) bem como nas séries de sucesso do streaming(Stranger Things, da Netflix, é um dos maiores exemplos de coleção de inserções de ações de product placement). No entanto, o auge de uma narrativa em vídeo para uma marca tende a ser o branded content, formato em que ela é a detentora da propriedade e do formato. Ou seja, a marca cria, produz e pensa como distribuir sua narrativa, algo que foi potencializado por plataformas como o YouTube, na qual as marcas podem criar seus próprios canais de exibição e publicar suas narrativas sem muitos empecilhos. Porém, independente da plataforma de publicação, o branded content precisa ser muito mais do que um comercial com apelo de vendas. Ele precisa conquistar consumidores por sua história, seus personagens, suas pautas e seu formato para, a partir daí, engajar o público na relação com o anunciante e influenciar, inclusive, na compra de produtos. É por isso que qualquer tipo de conteúdo produzido e financiado por marcas, ou seja, qualquer branded content precisa estar alinhado a outras frentes de planejamento de marketing para o sucesso comercial de produtos e serviços do anunciante.
Para delimitar melhor o conceito de branded content, devemos entendê-lo como conteúdo produzido ou financiado por uma marca; relevante para o consumidor, a ponto de ser demandado organicamente ou não ser rejeitado quando a ele se apresentar (num intervalo comercial, no digital ou em qualquer outra mídia); promotor de engajamento com a marca pela sua narrativa, aumentando a consideração, a paixão e a apologia por parte do consumidor. (MOURA, 2021, p.50)
O conteúdo promovido por uma marca pode e deve, portanto, afetar o público, de forma que mobilize emoções na audiência, de maneira que a maior parte das reações sejam positivas. Tem, assim, o mesmo papel de qualquer outro conteúdo audiovisual como, por exemplo, filmes, séries, reality shows ou revistas eletrônicas. Neste sentido, o branded content se aproxima de outro termo utilizado no mercado, o branded entertainment. Porém, defendemos que o termo branded entertainment delimita as possibilidades de gêneros de conteúdo que uma marca pode explorar na construção de suas narrativas, fazendo referência direta àquilo que simplesmente entretém. Conteúdos ficcionais (filmes e séries),(shows e videoclipes) e competições (reality shows e campeonatos esportivos) são alguns dos gêneros que podem ser explorados pelas marcas, tornando-se evidente ser possível ir além do entretenimento puro (MOURA, 2021, p.104).
Apesar de o termo branded content ter sido melhor delimitado conceitualmente a partir de 2001, a criação de conteúdos de marca em filmes e séries para crianças foi usual no universo infantil desde a década de 1980. A linha de brinquedos He-Man e She-ha, por exemplo, não seria o sucesso mundial que foi se não houvesse sido criada uma narrativa da marca em desenho animado para mobilizar a paixão dos consumidores pelos personagens e, consequentemente, pelo produto (NETFLIX, 2017). Os longas da boneca Barbie são, portanto, uma das formas usuais de atuação da indústria de brinquedos para cativar consumidores. Apesar de ter se estruturado melhor para produção de filmes a partir dos anos 2000, a Mattel tem histórico de iniciativas de criação de produções audiovisuais desde a década de 1970 (WIKIPEDIA, 2023). No entanto, o filme Barbie de 2023 é sua iniciativa mais bem sucedida de branded content. Propomos-nos a analisar agora o filme a partir da metodologia proposta por Moura (2021), que avalia cada ponto do formato de um branded content para apreender os motivos de seu sucesso. São cinco: o posicionamento da marca, que precisa estar expresso na peça; o território (linha editorial) da marca para geração de conversas; as parcerias de construção do formato, que vão de influenciadores digitais às tradicionais agências de publicidade; o conteúdo em si, que é o recorte criativo escolhido; e as ferramentas que serão utilizadas para que a peça tenha o alcance esperado.
Posicionamento
Expresso no site da empresa, o posicionamento da boneca Barbie, da Mattel, é claro: “inspirar o potencial ilimitado de cada garota” (2023 – a tradução é nossa). Esta perspectiva de atuação está expressa na narrativa do filme de 2023, que, inclusive, questiona os potenciais femininos para além de assumir profissões e carreiras bem sucedidas. O filme Barbie pondera que ser uma mulher realizada pode não estar exatamente associado a escolhas profissionais, o que mantém a narrativa ainda alinhada ao posicionamento da boneca enquanto produto, porém amplia o significado deste posicionamento diante do contexto social em nosso tempo, que quer aliviar as mulheres das pressões sociais por desempenho.
Território
Como apontado por Moura, o território “é a escolha do tema (ou do conjunto de temas) pelo qual a marca pode falar, do qual pode se apropriar ou, em casos mais específicos, pode inclusive se construir simbolicamente” (2021, p.93). Moda e beleza sempre foram territórios aos quais a Mattel associou a boneca Barbie e seguem sendo temas pertinentes em nosso contexto social, sobretudo para o público feminino. Porém, o empoderamento das mulheres, temática presente em nosso tempo em função das discussões dos papéis de gênero e das equidades de direitos e deveres, além da diversidade de etnias, corpos e identidades de gênero, têm sido apropriadas pela Mattel em seus brinquedos. Naturalmente, foram expressas no filme, em que a diversidade de representações da Barbie esteve presente, ainda que houvesse uma pasteurização de um universo social de classes média e alta, e uma cultura de valorização de carreiras, pontos que o próprio filme questiona em seu enredo a partir da trajetória de sua protagonista.
Parcerias
O parceiro da Mattel para a produção deste filme foi a Warner Bros. Pictures. No momento de produção deste artigo, não foi localizada documentação que demonstrasse o quanto cada empresa investiu na produção do filme. O que se pode apontar é que Barbie foi coproduzido entre Mattel e Warners Bros. Pictures, evidenciando que foi o projeto um conteúdo financiado em parte pela detentora das propriedades sobre a boneca, ainda que precisasse de um estúdio para colocar a produção à altura do que se esperava.
Conteúdo
A escolha de se fazer um longa-metragem em si estava nos planos da Mattel de estruturar sua linha de filmes a partir de suas propriedades mais relevantes, entre elas Hot Wheels e Barbie. Esta ambição de negócio está em acordo com o entendimento que a empresa faz de que o audiovisual amplia a consideração sobre seus produtos. Alguns veículos observam que a Mattel pode ter como ambição ser uma nova Marvel. A BBC chega a perguntar se a Barbie poderia ser uma espécie de Iron Man, ou seja, um dos principais representantes do universo Mattel assim como o herói é um dos maiores sucessos do universo Marvel.
Ferramentas de divulgação
Um clássico funil de marca, no qual publicitários distribuem formatos de mídia adequados para uma campanha atingir o consumidor, tem três etapas: no topo do funil, está a etapa para geração de notabilidade (ou awareness, como é praticado usualmente no linguajar do mercado publicitário brasileiro); no meio de funil, estão os formatos que auxiliam o consumidor a distinguir uma marca de outra, assumir preferências, engajar-se ou mobilizar-se para uma proposta que vai além do preço; e a conversão (ou lide, como se usualmente chama no linguajar publicitário), etapa em que o consumidor decide comprar o produto, está na ponta do funil. O branded content encaixa-se perfeitamente no meio do funil. Dentro desta perspectiva, o filme Barbie funcionou como ferramenta para a etapa de ampliação de consideração de compra do produto. Engajou consumidores no aumento da procura pelas bonecas da Mattel durante o ano de 2023. A Warner Bros. Pictures e a Mattel investiram mais de 100 milhões de dólares na divulgação mundial do filme. O investimento na divulgação do filme Barbie foi tão grande que ainda promoveu outro filme da Warner: Oppenheimer. Lançado simultaneamente, o filme foi associado ao fenômeno Barbie como blockbuster das salas de cinema durante o mesmo período, contribuindo para o sucesso por tabela.
Conclusão
A Mattel entende que lançar outros filmes a partir de seus brinquedos pode ampliar a venda de seus produtos. O filme Barbie (2023) foi sua mais bem sucedida iniciativa neste sentido, tornando-se uma referência em branded content. No momento de produção deste artigo, o departamento Mattel Filmes tinha 18 produções a serem anunciadas que seguirão o mesmo modelo de negócio das produções anteriores: a parceria entre a Mattel, detentora da propriedade intelectual na qual se baseiam os filmes e as animações, e os produtores de conteúdo (WIKIPEDIA, 2023). Entre as produções mais aguardadas da empresa, por exemplo, está o live action da franquia de carros de brinquedo Hot Wheels, que terá J.J. Abrams, famoso por estar à frente de outros blockbusters estadunidenses, como seu diretor. Todas estas produções, caso sejam bem sucedidas como produtos audiovisuais, podem ser compreendidas como bem sucedidos projetos de branded content: atraem audiências numerosas, mobilizam estas audiências afetivamente e aumentam a consideração destes consumidores pelos produtos que protagonizam os enredos tratados em formato audiovisual.
Referências
HARDY, Jonathan. Branded content: the fateful merging of media and marketing. Londres: Routledge, 2021.
HAVRYLENKO, Vladyslava. The art of marketing: how the barbie movie became a brand and cultural event. World Scientific Reports, (4). Disponível em: https://ojs.scipub.de/index.php/WSR/article/view/2265/2. Acesso: 28 de dez. 2023.
MILLER, Donald. Storybrand: Crie mensagens claras e atraia a atenção dos clientes para sua marca. São Paulo: Alta Books, 2019.
MOURA, Leonardo. Conteúdo de Marca. Os Fundamentos e A Prática do Branded Content. São Paulo: Summus Editorial, 2021.
NETFLIX. Brinquedos que marcam época (2017). Disponível em: https://www.netflix.com/title/80161497. Acesso: 29 de dez. 2023.
É hit! Todos os recordes da bilheteria de Barbie. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/barbie-todos-os-recordes-de-bilheteria#13. Acesso: 28 de dez. 2023.
Sucesso do filme da Barbie não é o suficiente e lucro da Mattel cai 49,5%. Disponível em: https://exame.com/invest/mercados/sucesso-do-filme-da-barbie-nao-e-o-suficiente-e-lucro-da-mattel-c ai-495/. Acesso: 28 de dez. 2023.
20 Hot Wheels: Live-action de J.J. Abrams será “emocionante e realista”, Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/hot-wheels-live-action-jj-abrams-emocionante-realista. Acesso: 29 de dez. 2023. São Paulo – SP – 15 – 17 de mai de 2024 – 2177-2401 versão online
WIKIPEDIA. Mattel Films. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Mattel_Films. Acesso: 28 de dez. 2028.
WIKIPEDIA. Barbie (film). Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Barbie_(film) Acesso: 28 de dez. 2028.