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Em agosto de 2020, a internet brasileira embarcou num debate promovido pela Natura. A marca havia acabado de escolher Thammy Miranda, homem transsexual, ator e filho da cantora Gretchen, para ser embaixador de sua campanha de Dia dos Pais. Thammy e a companheira Andressa Miranda são pais de Bento que, em dezembro de 2020, completará um ano de vida. 

Houve, claro, movimentações a favor e contra a escolha da Natura. A mídia estava mobilizada. Influenciadores digitais e celebridades, como Rafa Brites e João Vicente de Castro, fizeram posts espontâneos em seus stories no Instagram endossando Natura e se posicionando contra qualquer tipo de intolerância. Silas Malafaia, pastor que aproveita pautas como esta para reforçar o sentimento de grupo de seus seguidores contra aquilo que classifica como o mal, aconselhou fiéis a boicotarem a marca. O fato é que Thammy estava na boca do povo e as ações da Natura subiram 7% na bolsa na quarta-feira, 29 de julho, sendo uma das maiores altas do dia.

Boa parte da comunidade LGBTQI+ celebrava o fato de ter um homem trans protagonizando a iniciativa de marketing de marca. A comunidade entende como uma conquista. E, de fato, é. As guerras culturais são movimentos surgidos dentro da própria esquerda, marcadamente na década de 60 do século XX. Movimentos feministas, étnicos, sexuais e dos demais grupos identitários promoveram uma ruptura dentro da própria esquerda ao declarar-se pouco identificados com as pautas marxistas que colocavam a causa operária acima das narrativas tidas como pessoais na luta política. Foi dentro do próprio feminismo que consagrou-se a lógica da luta pessoal como luta política ao diagnosticar o trabalho da mulher como pouco representado dentro da conceito de trabalho do marxismo e de outros autores estruturalistas (aqueles atrelados a conceitos e teorias antes das rupturas dentro da esquerda). Michel Foucault, em seu livro Microfísica de Poder (1978), alertava para o fato de os discursos serem estruturas de poder aos quais os indivíduos poderiam se encaixar ou contra os quais poderiam lutar. Donna Haraway, na sua obra O Manifesto Ciborgue (1985), questionava por que o trabalho feminino, que sempre foi trabalho útil no lar, não havia sido compreendido como trabalho na causa operária ao não ser abarcado na lógica capitalista de trabalho produtivo (aquele que se pode escalonar). E, entre os movimentos negros e homossexuais, sobretudo nos Estados Unidos, as pautas por igualdades de direitos civis, como votar e casar, marcavam a organização política das gerações que mudaram a forma como estruturou-se o mundo. 

Marcha feminista em maio de 1968, na França (Imagem: reprodução)

Na Grã-Bretanha, os Estudos Culturais (produção com base na própria vivência) ganharam força ao reescreverem a história pela perspectiva de grupos antes não representados academicamente, institucionalmente ou corporativamente. São as estruturas de poder que pautavam os escopos onde deveríamos todos nós nos encaixar, escopo que foi questionado marcadamente em maio de 1968 na França, marcando a ascenção da Nova Esquerda no Ocidente, até que, em 1980 e 1990, este questionamento adormeceu. No Brasil, e novamente, no mundo, as pautas identitárias e contra-culturais ressurgiram nas jornadas promovidas pelas mídias digitais, que possibilitaram uma organização social a partir das redes sociais (Manuel Castells – A Sociedade em Rede, 2012). Soma-se a isso a geração narcísica, que não quer modelos prontos, sobretudo normativos, para adequar-se mas, sim, mostrar seu próprio entendimento de mundo. É o que Deleuze e Guattari, nas décadas de 60 e 70, chamavam de o anti-édipo (livro homônimo de 1972 de ambos os autores), conceito no qual alegavam que atravessar o processo de Psicanálise num consultório seria uma forma de normatização do sujeito, dando ênfase à força do narcisismo como movimento de resistência a esta processo de castração das potências individuais. Estabeleceu-se desde então esta Nova Esquerda, relativizando as produções institucionalizadas e dando abertura ao questionamento de muito do que se foi produzido na academia, na ciência ou em todas as manifestações de poder institucionalizadas. O rebote deste movimento é o relativismo como uma das expressões do nosso tempo, quando a própria Direita copia o movimento da Nova Esquerda e passa a relativizar produções e conceitos consagrados, como, por exemplo, o fato de a terra ser redonda e vacinas serem eficientes para conter epidemias (Michiko Kakutani – A Morte da Verdade, 2018). 

Mas o que isso tem a ver com as marcas?

As pautas da Nova Esquerda, que são pautas culturais e identitárias, declaram a que público se vinculam. Expressam o desejo e o poder de multidões organizadas, sedentas por representatividade. Não são todas as multidões identitárias que estão em pautas nas empresas que querem consumidores apaixonados por marcas. Nem toda diversidade é abraçada e a maior parte dos grupos identitários segue invisibilizada pela cultura, pela política e pelo capital. É fato também que as marcas, assim como os grupos identitários, preferem se associar mais a pautas culturais do que a pautas estruturais na política, aquelas que são discutidas fora das ruas, mas, sim, nos fóruns mais institucionalizados de debate de poder. Pelo menos, declaradamente, as marcas assim se posicionam. Afinal, abraçar causam identitárias requer não só um desgaste político aparentemente menor como ainda delimita que grupo pode se tornar um consumidor que advogue pela marca. Se as marcas ainda transformam as pautas identitárias da Nova Esquerda em propósito e balizador para sua atuação, a paixão dos consumidores que querem ver-se representados vem logo à tona. Já as pautas estruturais e institucionais, que também podem (e muitas vezes deveriam) ser abraçadas pelas marcas, seguem desprezadas ou pouco evidenciadas. Se há política e lobby institucional, são feitos nos bastidores.

A marcha de Stonewall em Nova York, 1969 (Imagem: reprodução)

O mundo é midiático. E vai seguir cobrando das marcas posicionamentos. As redes sociais são onde este debate está presente. Os grupos das novas Direita e Esquerda esgarçam-se e as pautas culturais e pós-estruturalistas não vão dar conta da reorganização política da sociedade. O extremo debate no mundo reaquece a importância das instituições. Será que as marcas vão endossar esta preocupação? Ou seguirão apoiando as movimentações identitárias de grupos em busca de representatividade? Se for esta a escolha, que aparentemente tem sido, que isto não seja apenas uma expressão de marketing e negócio mas, sim, seja um propósito da atuação das empresas em suas formas de atuar e dialogar com a sociedade.

Leonardo Moura

Autor Leonardo Moura

Criador do Branded Content Brasil.

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